Comentando A mente do analista

  • Neyza Prochet Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), Rio de Janeiro, RJ

Resumo

A pandemia, quem diria, possibilitou, por meio da comunicação on-line, que distâncias fossem anuladas e a comunidade psicanalítica experimentasse, paradoxalmente, uma proximidade maior, que muito nos ajudou a atravessar os momentos difíceis do primeiro ano desta epidemia. Foi um tempo onde o que era conhecido deixou de ser, as antigas rotinas não existiam mais e nosso entorno, ambiente e pessoas, se apresentava potencialmente letal. A pandemia nos roubou a presença física, nos tirou do setting usual, instalou a incerteza como uma sensação dominante. Isso era evidente, e a pergunta crucial era: Como seguir? O que se mantém, ou melhor, como se mantém a psicanálise nestas condições?
O livro A mente do analista de Luís Claudio Figueiredo se constituiu através da sensibilidade e competência do autor em escutar, refletir, compreender e elaborar os acontecimentos deste tempo e trazer em evidência o que é o cerne da experiência analítica: A mente do analista. Aquilo que cria e sustenta nossa clínica – a presença, viva, consistente e sensível do analista. Uma passagem ocorrida com Winnicott, relatada a Grolnick (1993, p. 15) por Claire Winnicott, ilustra bem esta posição fundamental: Num debate acirrado dentro da Sociedade Britânica de Psicanálise sobre especificidades técnicas como o número mínimo de sessões semanais, perguntaram a Winnicott o que ele pensava ser psicanálise ou não. Ele responde sucintamente: – “Se é psicanálise? Ora, depende de quem faz”.
A pergunta crucial é respondida. A psicanálise se mantém nas mais extraordinárias condições. A mente do analista é onde a análise acontece.
Logo no início do livro, destaco um trecho precioso:
É a partir do amor e gratidão a uma experiência de psicanálise – mesmo que os encontros não tenham sido assim nomeados – que se instala e consolida aquilo que uma vez denominamos “contratransferência primordial”: uma disposição de mente que precede os encontros com outros sujeitos em particular, mas que antecipa esses encontros, apesar das incertezas que trazem e das turbulências que produzem, como oportunidades de transformação e crescimento para si e para os outros (GROLNICK, 1990, p. 10).

Encontro, ou melhor, reencontro a origem de minha contratransferência primordial. Minha primeira “analista” foi minha avó com nome de uma flor, Margarida, mas que tinha perfume de jasmim. Eu sentada numa enorme poltrona de madeira, em uma varanda sombreada pelas mangueiras que se espalhavam pelo quintal. Ela, próxima a mim, as mãos ocupadas na costura, ouvindo calma e atentamente as zangas e dores da menina. A fonte do “enquadre interior”, a criação do “espaço côncavo de hospitalidade psíquica” são resultantes do que foi vivido com ela, forjados na calidez e acolhimento da boa experiência de cuidado.
É importante perceber que a capacidade do individuo para ver a si e ao mundo, criativamente, depende da internalização da experiência de ter sido olhado por um olhar sustentador, precursor da instauração do verdadeiro self. Ao nos debruçarmos sobre o psiquismo de uma pessoa a porta de acesso é nosso próprio psiquismo que viabiliza o reconhecimento do outro. Mannoni (1988) assinala que em toda compreensão do outro, de fato, é também um vestígio de nós mesmos que encontramos.
No livro, compreendemos quão árduo é o percurso analítico e como este pode ser intenso, turbulento e surpreendente. Logo de início, acompanhamos as modificações que os conceitos de inconsciente(s), transferência e resistência sofreram ao longo da evolução do pensamento psicanalítico e como as exigências à mente do analista crescem à medida que a clínica e nossa compreensão se ampliam. Bem na linha do “melhor proveito no mau negócio” Figueiredo aconselha, como Bion, a aguardarmos, indefesos, o inesperado que se avizinha. Percorremos este caminho, jogados “entre a aventura do novo e a segurança do já sabido” e entre os espaços dos inconscientes e os limites das consciências (FIGUEIREDO, 2021, p. 46).
Tal como receber em nossa casa um estranho, um estrangeiro, o analisante que chega será hospedado psiquicamente dentro de nós. Não podemos pedir a ele que fale nossa língua, que saiba nossos hábitos e que compreenda nossos códigos. Dentro das leis sagradas da hospitalidade2 (do latim “hospitalitas,atis”, condição de forasteiro, qualidade de ser hospitaleiro), vigente desde os tempo homéricos, um estrangeiro, ao ser hospedado, tem o direito divino de ser acolhido, sem perguntas ou exigências, até que suas necessidades básicas sejam contempladas. A hospitalidade psíquica segue a tradição ferencziana, onde a criança é o estrangeiro que chega e vai necessitar de toda a ajuda do ambiente para fazer a transição em direção ao mundo compartilhado (FERENCZI, 1928/1992, 1929/1992).
É interessante pensar que antigamente a palavra hóspede designava tanto aquele que hospedava como o que era hospedado, o que sugere a paridade destes dois sujeitos, discriminados em suas funções e demandas, mas irmanados em sua humanidade original, ambos vulneráveis às tensões e “encrencas” derivadas deste encontro.
E o coitado do analista vai precisar acender uma vela para Deus e outra para o Diabo. Manter-se vivo e criativo na difícil tarefa de construir uma relação que não só atenda às leis da hospitalidade (in)condicional ao analisante, mas, ao mesmo tempo, ser responsável por sustentar as condições necessárias para que este acolhimento aconteça. (MIRANDA. 2003).
Como se não bastasse, a mente do analista trabalha num tempo muito específico e altamente complexo. O tempo analítico ocorre num campo que permite a coexistência de diversos níveis temporais, contraditórios entre si, confluindo para o que Figueiredo chamou de heterocronia – um tempo múltiplo e em tensão constante, num aqui e agora, que é ao mesmo tempo, muito mais que o “aqui e agora”, um tempo de todos os tempos, os idos, os futuros, os internos e externos, um tempo que também inclui o fora do tempo. É uma perspectiva fascinante porque vai ser justamente neste tempo de heterocronia e que extrapola a nossa capacidade narrativa, que uma sessão “acontece”.
Serão os acontecimentos em análise que irão facilitar e mediar as relações entre os tempos diversos para que algum tipo de movimento, de transformação possa acontecer. A partir destas concepções, puder imaginar a sessão analítica como um portal, um tempo e espaço singulares onde, como disse Adam Phillips (1998), vai ser possível transformar o modo como lembramos, para ser possível esquecer.
Volto à pergunta inicial: Como exercer a psicanálise quando o setting tradicional não é mais possível? O autor nos lembra: “o analista pode e precisa fazer ‘outra coisa’, pois ainda assim ele faz coisas que apenas um psicanalista poderia fazer bem” (p. 72).
Vemos, então, de que não há determinismo ou inflexibilidade quanto a lugar, objeto ou modo de realização da psicanálise. O que está em questão é o humano, o estar no mundo e suas vicissitudes e, desta forma, tudo o que envolve a subjetividade de um indivíduo pode ser incluído como um campo possível para o exercício da Psicanálise. Mas, e o efeito disto na mente do analista?
Luís Claudio Figueiredo demonstra que o dispositivo analítico é sempre virtual, pois acontece num encontro entre mentes, num tempo e lugar com complexidades e especificidades muito além da realidade física. Lévy (1996), ao estudar o fenômeno virtual, o define como “um processo de transformação num modo de ser num outro” (p. 12). No virtual a identidade dos objetos não é definida por sua atualidade ou concretude, mas é direcionada para um campo de interrogações, de mutações de identidades possíveis, orientadas para um devir, um poder vir a ser.
A partir da proposição de Green (FIGUEIREDO, 2021, p. 74) de partes constantes e variáveis no enquadre analítico a elasticidade da técnica se torna possível através do “enquadre interior do analista” – a sustentação dada pela mente do analista em sua dimensão ética, sua presença implicada e em reserva.
O espaço virtual analítico precisa sempre ser protegido das invasões pelo enquadre interior que sustentará a escuta, o sonho e a troca entre analista e analisante.
No capítulo que versa sobre o atendimento remoto, vale realçar a distinção entre as diversas modalidades transferenciais encontradas (de fala ou objeto), das realidades em falta ou excessivas já que o atendimento remoto propicia tanto uma vivência de privação sensorial parcial, como também um alagamento de “microrrealidades”. O autor enfatiza a importância do trabalho de pesquisa e de transmissão para a manutenção da vitalidade da psicanálise.
Em sintonia com esta posição, vale lembrar Pontalis:
escrever não é exprimir ou comunicar, nem mesmo dizer, e menos ainda… “produzir um texto”. É querer dar forma ao informe, alguma permanência ao mutável, uma vida – tão frágil, como se sabe – ao inanimado. O que autor e leitor esperam então obter não é, como no caso do escrito científico, uma verdade.
A ideia de uma mente de analista como uma construção “artificial” de um “eu de trabalho” é desafiadora. Desenvolver a capacidade de reverie ou o conditioned daydreamings de Fliess são aquisições que pertencem ao mesmo espaço do sonho e ao brincar. Seja por um supereu maduro, a paradoxalidade do sono REM ou o pacto implícito da transicionalidade há uma autorização a uma liberdade ampliada para entrar em contato com as fantasias mais extraordinárias. Isto é feito no campo transferencial, “criação compartilhada de analista e analisando, sendo, para ambos, parte de seus mundos internos e externos” (p. 105).
No capítulo A mente do analista, acompanhamos vários autores que trabalham com situações clínicas que testam os limites da sanidade do analista e da necessidade/risco de sermos por ela afetados. Achei especialmente valiosa a ideia de acolher a capacidade alucinatória do analista onde os estados não representados (ou não mentalizados) exigiriam uma suplementaridade do analista que precisaria disponibilizar-se a uma contratransferência igualmente “alucinatória”. Lembrei-me do conceito de transferência delirante de Margaret Little (1992). Nos casos descritos por Little, não há a possibilidade de uma transferência clássica, no sentido de deslocamento de representação, pelo simples fato de que não há ainda um alguém a quem transferir. Por isso, o analista precisa sustentar um momento de total indiferenciação, através da aceitação dos termos impostos pela situação alucinatória, a fim de que o indivíduo possa sair dela apenas quando lhe for suportável e, ao mesmo tempo, ser capaz de preservar em sua realidade interna, seu lugar de analista, as duas identidades.
A aventura analítica é descrita através do encontro de inconscientes, das características das transferências e resistências vividas pelos coitados dos analistas e dos coitados de seus pacientes e da escuta polifônica. Para entender nosso trabalho, é mister entender o que se passa em nossa mente, abrir-se para o novo, deixar-se afetar sem se perder. A mente do analista trata sobre o campo das potencialidades, de um trabalho continuamente renovado e ressignificado, sabendo-nos finitos e imperfeitos, mas apaziguados em nossa humanidade.
Para terminar, uma obra não é apenas a obra que o autor escreveu. Ela também é a obra que cada leitor cria junto a ele, tornando-se coautor daquele trabalho. Uma obra que nos toca não é aquela onde concordamos com tudo, mas aquela que nos incitar a produzir, a pensar, a criar a partir da obra primeira. Uma bela obra é aquela que nos faz sentir com ela e que inaugura um espaço associativo em expansão entre ela e o leitor. Diane Airbus, artista e fotógrafa americana extraordinária falecida em 1971 diz que “O sentido de um poema, não está no poema. O sentido de um poema está num novo poema”. E também é dela uma frase que um bom psicanalista poderia/deveria dizer depois de ler este trabalho: “If I stand in front of something, instead of arranging it, I arrange myself.”
Ao longo de todo o livro, com freqüência, eu me detinha em um parágrafo, ao lembrar de um caso, uma memória de análise pessoal, um texto lido. Fazia uma anotação, ou procurava o autor ou referência que tivesse sido apresentada no capítulo.
Esta, então, é uma obra com a marca registrada de Luís Claudio Figueiredo. Ao mesmo tempo em que é um texto que transborda um conhecimento espantosamente vasto e diversificado da teoria psicanalítica, ele nos captura quando compartilha com o leitor o gosto em se deixar afetar, explorar a própria interioridade e pensar, com consistência e sensibilidade, sobre a experiência analítica, no caso, sobre o que se passa na mente de um analista. Há o cuidado em não alienar em campos distintos analistas e teoria, mas trabalhar a relação da pessoa do analista com seu ofício e seu saber, mais especificamente, o relacionamento entre o psicanalista, o modelo teórico por ele adotado e a prática clínica.
Que a leitura de A mente do analista ofereça a todos um campo rico de novas e criativas construções além do imenso prazer em acompanhar os surpreendentes caminhos percorridos num ofício apaixonante.

Publicado
01-12-2021
Como Citar
PROCHET, N. Comentando A mente do analista. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 43, n. 45, p. 283-289, 1 dez. 2021.