Ferenczi

pensador da catástrofe

  • Bruno Cardoso Lages Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), Rio de Janeiro, RJ

Resumo

Durante os dois primeiros anos da pandemia do novo coronavírus, a partir de abril de 2020, o filósofo italiano Franco Berardi, mais conhecido como Bifo, reuniu-se duas vezes por semana com um grupo de amigas e amigos, psicanalistas, psiquiatras, psicoterapeutas e trabalhadores da saúde para, em suas palavras, “pensarem juntos”. Em entrevista ao escritor e ativista Amador Fernández-Savater, em março de 2022, ele afirma que “contra o pânico, só existe uma vacina, e essa vacina é pensar juntos. Pensar e, mais ainda, pensar juntos, tem enorme potencialidade terapêutica e política.”

No mesmo mês de abril de 2020, iniciou-se uma série de encontros promovidos pelo Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi, transmitidos ao vivo e depois disponibilizados no canal da instituição no YouTube. Ao todo, foram 8 lives, todas com formato semelhante: dois psicanalistas apresentaram suas falas e foram mediados por um colega, que além de coordenar a mesa, administrou a participação ao vivo do público via chat no próprio YouTube ou por mensagens enviadas às outras redes sociais do GBPSF.

As seis primeiras lives tiveram como tema geral a “Elasticidade da técnica em tempos de Covid-19” – uma referência direta ao ensaio escrito pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, A elasticidade da técnica psicanalítica (FERENCZI, 1928) – e focaram nos impactos que os múltiplos desarranjos (sanitário, social e político) tiveram sobre a clínica psicanalítica, convocando analistas e analisandos a reinventar a psicanálise praticada por eles. As duas últimas, intituladas “Lives Internacionais”, abordaram a dimensão política da pandemia no continente latino-americano. Visitando o canal do GBPSF no YouTube, constata-se que cada uma das transmissões teve milhares de espectadores, sendo que o conjunto delas totalizava, em agosto de 2022, quase 60 mil visualizações, em uma demonstração irrefutável da vitalidade do pensar juntos e do seu possível efeito terapêutico.

Não surpreende, assim, que esse vigor tenha transbordado para fora do meio digital e ganhado uma versão em papel, no livro organizado por Daniel Kupermann, Jô Gondar e Eugênio Canesin Dal Molin, membros fundadores do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. O livro, com o sugestivo título Ferenczi: pensador da catástrofe, é fruto de uma reelaboração das transmissões online promovidas pelo GBPSF entre 18 de abril e 18 de julho de 2020. Aproximadamente dois anos após o primeiro evento, cada dupla de apresentadores foi convidada a rever seu respectivo trabalho e traduzi-lo em um artigo que, por sua vez, foi enviado ao mediador, a quem foi confiada a tarefa de (re)ler os artigos e escrever um terceiro texto inspirado por eles.

Dessa forma, Ferenczi: pensador da catástrofe é uma obra que se configura, de saída, como sofisticada trama polifônico-dialógica. Seus 24 autores (que contribuíram com um texto cada, agrupados três a três a partir de 8 temas centrais) “conversam” entre si, com o público e com Sándor Ferenczi, além de outros importantes autores dos campos da psicanálise, da filosofia, da ciência política e outros cujas ideias se afinam com os conceitos ferenczianos invocados para pensar a clínica psicanalítica em tempos de catástrofe. Mas o livro vai além da simples multiplicidade de vozes. Ele reverbera, ecoando as ideias dos seus autores, tanto no tempo (lembremos que não é trivial o intervalo de aproximadamente dois anos entre a versão do texto apresentada em 2020 e sua atualização em artigo para o livro), quanto no espaço (há o texto produzido no ápice da quarentena e a versão escrita quando, vacinados, seus autores já faziam excursões pelo mundo novamente).

Em outras palavras: há uma feliz coincidência entre a estrutura do livro (organizado em muitas partes e subpartes) e a originalidade com que Ferenczi aborda subjetividades fragmentadas pelo trauma e pela catástrofe. Para o pensador húngaro, tanto o trauma quanto a catástrofe podem ser ocasiões de grande liberação de energia criativa que, apesar do esfacelamento traumático, têm, mesmo assim, potencial estruturante, apontando para novas formas de vida. Nesse ponto, como a ideia de catástrofe ocupa lugar central na obra, desde seu título, vale a pena evocar o artigo de Julio Verztman, no capítulo 7 (VERZTMAN, 2022), por dois motivos. Primeiro, pela forma como propõe que se diferencie trauma e catástrofe. Para o psicanalista carioca, o trauma é uma experiência singular que se distingue por ser

(...) uma falta ou um excesso, um aquém ou um além, o impossível e o inconcebível que se abate sobre cada um de nós e que esgarça nossa capacidade de usarmos nosso funcionamento psíquico habitual a fim de fazerfrente à nova exigência (...) (VERZTMAN, 2022, p. 81).

Já a catástrofe tem a dimensão social de um “evento ou experiência que deixa marcas em todos aqueles que passaram por ela” (VERZTMAN, 2022). Segundo, por chamar atenção para o fato de que Ferenczi não tinha uma interpretação unívoca do trauma e da catástrofe. Ainda que sejam ocasiões de dor e sofrimento (outro bom ponto do artigo é a reflexão sobre possíveis diferenças entre uma e outro), ambos podem ser vividos como episódios desestruturantes (sentidos pelos que os sofrem como experiências de dor excessiva, incontrolável e mortífera), mas também como acontecimentos estruturantes, ou seja, momentos em que o sujeito que padece acessa energias vitais que lhe possibilitam transformar a si mesmo e ao ambiente, em colaboração com seus pares, de modo a viabilizar a continuidade da existência.

Um dos pontos altos do livro está na forma como a catástrofe é descrita como uma ocorrência que, ao horizontalizar a relação analista-analisando via sofrimento compartilhado, reconfigura posições de poder. Daí muitos dos autores da obra dedicarem-se aos efeitos da pandemia sobre aspectos técnicos e éticos da prática analítica. O consultório particular construído pelo analista, dos móveis à iluminação, e que já havia sido posto em xeque mesmo antes de a quarentena obrigar todos a redefinir o que é e onde pode estar um “divã”, revelou, na catástrofe, sua potência polimórfica. Revelou-se, igualmente, sua versão perversa, já que as diferenças socioeconômicas, mais evidentes do que nunca, alijaram muitas pessoas que, mesmo desejosas de continuar suas análises, não tiveram condições de o fazer. O encontro entre analistas e analisandos passou a acontecer em lugares inusitados e de formas surpreendentes. Além das chamadas por vídeo, houve análises apenas por voz, por e-mail, ao ar livre, sentando em bancos de praça ou fazendo caminhadas. De um dia para o outro, fomos convocados a experimentar o que Denise Goldfajn chama de “e-setting” (GOLDFAJN, 2022), descobrindo novas formas de intimidade mediadas pela tecnologia, ou, como cita Peron, “e-intimacy” – “E-ntimidade”, em português (PERON, 2022). A maioria desses novos dispositivos não chega a ser uma novidade. A clínica ampliada, o uso de espaços abertos e o emprego de recursos tecnológicos acontecem há décadas na cena analítica. A novidade está na faceta catastrófica do momento histórico que atravessamos: todos tivemos que inventar, ao mesmo tempo, novas formas de fazer psicanálise. O que antes era exceção, experimenta- ção esporádica, virou um paradoxo: ao mesmo tempo condição de possibilidade da clínica (sem os dispositivos digitais, a clínica teria cessado, até segunda or dem) e tsunami ameaçador (como dar conta de virar o consultório de ponta cabeça em tão pouco tempo?). Como lembra Jô Gondar, diante da velocidade com que novas tecnologias passaram a ser a única forma segura de encontro, muitos de nós ficamos em uma espécie de choque. A autora faz interessante comparação com as primeiras projeções do curta-metragem A chegada do trem à estação de La Ciotat, dos irmãos Lumiére, no qual é possível ver um trem se aproximando de frente, como se fosse sair da tela em direção ao público. Era comum que os espectadores, estarrecidos, se levantassem às pressas de suas poltronas e corressem em direção à saída do cinema (GONDAR, 2022, p. 56).

Expulsos dos enquadres aos quais estávamos acostumados, atirados violentamente nos espaços abertos e indeterminados do virtual, na incerteza do futuro ameaçado por uma doença desconhecida, somos convidados durante a leitura do livro a buscar inspiração na mitologia construída por Ferenczi em Thalassa (FERENCZI, 1928). Como é sabido, Thalassa – “mar”, em grego, como nos lembra Daniel Kupermann em seu artigo (KUPERMANN, 2022) – é um ensaio originalíssimo que descreve a vida como trânsito contínuo, uma sucessão de diásporas. Do meio aquático, de onde foi banida pela catástrofe da estiagem dos oceanos, em direção às novas e inóspitas regiões secas do planeta. Kupermann pontua que o título da primeira edição de Thalassa em húngaro foi, justamente, Katasztrófák, catástrofe em português. E é Denise Goldfajn, no seu já citado artigo (GOLDFAJN, 2022), que descreve o contexto da pandemia como uma segunda diáspora recente (a outra teria acontecido quando vários povos se viram obrigados a se deslocar em massa na Segunda Grande Guerra). No entanto, o livro deixa claro que, a partir de uma perspectiva ferencziana, o exílio diaspórico pode ser também ocasião de descoberta e reinvenção. Para Ferenczi, a continuidade da vida após a catástrofe está condicionada ao atendimento de suas necessidades em três âmbitos: do indivíduo (dimensão ontogenética), da espécie (dimensão filogenética) e das relações de todos com todos, incluindo a esfera do inorgânico no mundo (dimensão perigenética). O trânsito talássico acontece em redes sobrepostas, em múltiplas conexões com os outros, com o mundo e com a nossa história. Amparados por elas, podemos sentir, ao mesmo tempo, nostalgia e esperança. Olhamos para trás, saudosos do lar que perdemos e, influenciados por essa memória registrada em nossos corpos, acreditamos que um outro mar pode existir no horizonte.

É como Franco Bifo Berardi disse: “O único que podemos fazer neste mundo em que se confunde o Mundo com a Terra e não entendemos onde estamosnem como sobreviver, o único que podemos fazer para fugir do pânico e da depressão é pensar juntos”. Dizendo de outra forma, pensar juntos é um processo bio-psíquico-político que possibilita que transformemos a dor excessiva em sofrimento compartilhável e, como tal, metabolizável. Pensando juntos podemos, ao mesmo tempo, sustentar nossa nostalgia e suportar a espera, sempre criativa, por novas formas de se viver em comunidade. Na mesma entrevista, Bifo lembra que, no início da pandemia, as pessoas iam para suas janelas e, de lá, cantavam. Batiam palmas e panelas, como quem estivesse à deriva, mas com ânimo suficiente para lançar cordas ao mar, apostando na hipótese de conexão, na tentativa de reconstruir as malhas afetivas e ecológicas por onde podem circular cuidados mútuos. Cada um dos textos de Ferenczi: pensador da catástrofe pode ser lido como um desses brados a patir das janelas abertas diante da catástrofe a nos inserir na conversa, convidando-nos a experimentar a sobrevivência a partir do pensar (e do sentir) junto com seus autores.

Biografia do Autor

Bruno Cardoso Lages, Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), Rio de Janeiro, RJ
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Mestre em linguística aplicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorando em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Referências

FERENCZI, S. A elasticidade da técnica psicanalítica. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1928. (Obras completas, Psicanálise IV).

______. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1928. (Obras completas, Psicanálise III).

GOLDFAJN, D. S. Quando nada será como antes: a elasticidade da técnica psicanalítica em tempos de Covid-19. In: KUPERMANN, D.; GONDAR, J.; DAL

MOLIN, E. C. (Orgs.). Ferenczi: pensador da catástrofe. São Paulo: Zagodoni, 2022.

GONDAR, J. Novas tecnologias e a elasticidade da técnica psicanalítica. In:

KUPERMANN, D.; GONDAR, J.; DAL MOLIN, E. C. (Orgs.). Ferenczi: pensador da catástrofe. São Paulo: Zagodoni, 2022.

KUPERMANN, D. A catástrofe e seus destinos: os negacionismos e o efeito vivificante do “bom ar”. In: KUPERMANN, D.; GONDAR, J.; DAL MOLIN, E. C. (Orgs.). Ferenczi: pensador da catástrofe. São Paulo: Zagodoni, 2022.

PERON, P. A psicanálise lançada no século XXI. In: KUPERMANN, D.; GONDAR, J.; DAL MOLIN, E. C. (Orgs.). Ferenczi: pensador da catástrofe. São Paulo: Zagodoni, 2022.

VERZTMAN, J. Catástrofe, trauma, dor e sofrimento. In: KUPERMANN, D.;

GONDAR, J.; DAL MOLIN, E. C. (Orgs.). Ferenczi: pensador da catástrofe. São Paulo: Zagodoni, 2022.

Publicado
16-11-2022
Como Citar
LAGES, B. Ferenczi. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 44, n. 47, p. 265-270, 16 nov. 2022.