Tecendo laços e desatando nós:

uma proposta radical de Fernanda Palermo

  • Camila Flaborea Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, São Paulo, SP

Resumo

Suportei meu sofrimento
De face mostrada, riso inteiro
Se hoje canto o meu lamento
Coração cantou primeiro

Ivan Lins & Ronaldo Souza

 

Alberto Konicheckis descreve a pesquisa de Fernanda Palermo como uma “delicada percepção da complexidade” (p. 232). Inicio esta resenha a partir de suas palavras para anunciar ao leitor que algo que reúne delicadeza e complexidade exige, também de quem lê, entrega e abertura para chegar aos poucos, e com rigor, no terreno proposto pela autora. O livro intitulado Tecendo laços e desatando nós: a sensorialidade na clínica psicanalítica com famílias, publicado em 2024 pela INM editora, teve origem na tese de doutorado da autora pela PUC-Rio e o título anuncia o escopo da proposta.

Trata-se, portanto, numa cartografia inicial do trabalho, de um estudo no campo da psicanálise de casal e família e da presença do sensório, do corporal, dentro deste contexto. No entanto, a obra merece ser lida e relida, cuidadosamente, por analistas de todas as áreas: os que atendem grupos e os que se debruçam sobre o atendimento individual. A relevância do assunto para todas e todos que compartilham o ofício da psicanálise se revela inequívoca, pela robustez teórica e pela abertura da escuta clínica proposta pela autora.

Posto isto, entendo que seja da maior importância buscar explicitar qual é o caminho que Fernanda faz ao abordar o tema, tanto na forma quanto no conteúdo. A pesquisa tem rigor teórico e vivacidade em igual proporção; tem sutileza e limites firmes; transita pela história da psicanálise e entre o singular e o plural, simultaneamente. Tem a abordagem da psicanálise contemporânea, pós-escolas, sem dogmatizar nenhuma delas. Por fim, existe, como pano de fundo (essa foi a impressão que tive ao terminar o livro), a integridade de uma analista-pesquisadora que põe na frente de tudo o respeito ao sofrimento humano.

É um livro em movimento. A proposta de desatar nós atinge o leitor de tal forma que me senti desafiada a encarar a robusta proposta de pesquisa como quem dança com a autora. Ora era conduzida em uma direção, ora em outra, passos variados, repertório amplo, mas com condução sempre firme, ao mesmo tempo que, invariavelmente, respeitosa.

Outra metáfora que pode ajudar a entender a feitura da obra é a de uma sanfona, ou acordeon, se preferirem. Instrumento que, para produzir um som, precisa se mover em expansão e retraimento, com múltiplas combinações possíveis, produzindo os mais variados sons, a depender de até onde estica e de como retrai. As metáforas, da dança e da música, dão notícias do movimento, das harmonias, das inúmeras combinações e dos efeitos no corpo que elas geram. E é apenas com a presença do corpo que a dança e a música podem acontecer.

Farei o melhor possível para traduzir as metáforas propostas aqui num raciocínio a ser compartilhado com quem tiver curiosidade de entender como cheguei até elas, convidada por Fernanda.

Para isso, vou me apoiar nos eixos da sanfona por assim dizer, tentando fazer jus à não linearidade do pensamento clínico da autora. Mas é preciso reforçar que os eixos não são excludentes, ao contrário, apresentam-se de forma simultânea, polifônica, em todo o desenvolvimento do livro.

Fernanda desce âncora nas raízes da psicanálise e expande o pensamento em direção à sensorialidade como representante, ou como representação, do mistério da vida. Sem abrir mão das camadas históricas já consolidadas em nossa epistemologia, as questiona como único paradigma possível. Parte de uma visão que conecta profundamente o somático e o psíquico, localizando a mente também nos poros, rompendo assim o binarismo positivista rumo a outros saberes.

O primeiro eixo já se anuncia: o da História da psicanálise.

No primeiro capítulo, intitulado O psiquismo familiar e a intersubjetividade, somos lembrados da dimensão grupal da obra freudiana presente em Totem e tabu (1913), confirmando “a supremacia do grupo totêmico sobre o parentesco de sangue” (p. 20). Aqui, a autora ressalta os “sentimentos ambivalentes do ódio ao pai tirânico e da culpa sentida por seu assassinato” (p. 20) e assinala o material clínico sobre o qual se trabalha na clínica de famílias. Diz Palermo

 

As noções de ambivalência, de sacrifício e de terror, ligadas ao tabu, estão presentes no funcionamento grupal e nas fantasias familiares. A ideia de sacrifício está presente no grupo e/ou na família. Cada membro, parente ou criança, pode, inconscientemente, dar, em sacrifício, uma parte de si ou a totalidade de seu ser, a fim de que o vínculo subsista  (PALERMO, 2024, p. 21).

 

Expõe, na sequência, um primeiro conceito da psicanálise contemporânea, fazendo ligação com a construção freudiana: o corpo grupal. Formulação fundamental para o entendimento do pensamento teórico-clínico que será desenvolvido ao longo de todo o livro, diz a autora:

 

A identidade comum é a identificação ao corpo comum grupal, ao corpo imaginário comum, incorporado. A ilusão de um corpo comum é entendida nos estudos contemporâneos como fomentadora de vivências de ameaça e, ao mesmo tempo, de sensação de proteção dos membros da mesma família (Id., ibid., p. 21).

 

De chofre, sou lançada à imagem de uma árvore. Freud é raiz, a história da psicanálise é agora seiva de comunicação e manutenção de circulação , mas eis-nos diante de galhos e frutos possíveis que dão notícias de um texto de 1913, seminal e ainda vivo. No tronco, encontramos Kaës , debruçado sobre Freud, entendendo que “o sujeito da herança é o sujeito do inconsciente, um fim para si mesmo e um elo em uma cadeia que o precede e à qual ele pertence” (Id., ibid., p. 22). A ele, soma-se Piera Aulagnier para dar substrato à autora, que amplifica a ideia do que seja uma possível metapsicologia familiar , dizendo que: “produz-se, então, um movimento de gangorra entre partes individuais, conscientes, adultas e partes reprimidas, inconscientes, infantis ou primitivas. Ocorre, ao mesmo tempo, um transbordamento do infantil e do arcaico no adulto” (loc. cit.).

A esta altura, já podemos perceber a polifonia da proposta teórico-clínica da obra e talvez tenha ficado nítido o tal movimento sanfonado. Seguindo esse jogo, logo voltamos a Freud, com seus conceitos fundantes de identificação e incorporação, para somente depois avançarmos novamente aos pós-freudianos e sua concepção de grupalidade psíquica. É aqui que encontramos pela primeira vez outros constituintes que forjam a madeira de nossa árvore, ou, dizendo de outra forma, que forjam o raciocínio clínico da autora: Winnicott e Bion com suas respectivas contribuições ao campo da intersubjetividade. Diz Palermo: “O psiquismo familiar tem o encontro como marca, pois há a concepção de que o grupo é uma formação que transcende o conjunto dos sujeitos que o compõem, mas valoriza suas singularidades” (p. 25).

A importância das contribuições winnicottianas sobre a dupla mãe-bebê vai sendo posta às claras, bem como a função metabolizadora do ambiente e a rêverie bionianas. Também vem de Bion (um analista com vasta experiência com grupos) o aporte da teoria do pensar, dos ataques ao vínculo e o destaque para a problemática da alteridade.

É neste ponto ainda que entendemos a importância da ausência como inauguradora do pensar (p. 27). Mais adiante, o negativo – conceito desenvolvido por André Green – ganhará outros contornos, mas não nos adiantemos demais.

Um recurso defensivo, a identificação projetiva, que será também utilizado como recurso comunicacional já nos primórdios da vida, também é trazido à luz aqui pela primeira vez: “A mãe sonhará e pensará o que o bebê não pode ainda pensar, realizando uma função de continência, em um processo mútuo, um encontro subjetivo imprescindível” (PALERMO, 2024, p. 27).

Indo além, apoiada em Bion e na tese de um corpo familiar, Fernanda propõe “considerar a importância de um aparelho de pensar pensamentos familiar que seja capaz de metabolizar conteúdos advindos de gerações precedentes, dando condições para os processos de subjetivação” (Id., ibid., p. 28).

Creio ser o momento de entrelaçarmos os eixos da História da Psicanálise com um segundo eixo, a saber, a contínua mobilidade e concomitância entre as dimensões do sujeito. Somos seres singulares e plurais, criadores de um grupo e criados por ele. Dançamos entre o intrapsíquico e o intersubjetivo, entre as gerações, entre os corpos e seus mistérios indizíveis, entre os silêncios, a intimidade e os segredos. Existimos em ressonância polifônica entre o inconsciente individual e o grupal, somando camadas, nunca as excluindo.

Vamos seguir a autora na construção dessa sinfonia, deixemos que seja ela a maestra… Chegamos a outro autor, Jean Claude Rouchy, a partir de quem Fernanda esclarece sobre a importância da não patologização dos aspectos primitivos da grupalidade. Descreve ainda a importância dos chamados grupos de pertencimento, aqueles que o autor referido entende como uma estrutura transicional entre o intrapsíquico e o psicossocial. Sintetiza dizendo que “é importante frisar que o alcance da palavra na comunicação familiar e a inscrição na linhagem se ancoram nos traços de incorporados culturais do grupo de pertencimento primário” (p. 31).

Mais uma camada, a da cultura, é acrescentada a esse eixo do singular-plural (termo cunhado por Kaës). Para ilustrar essa somatória, diz Palermo:

 

A hipótese do autor é de que o sistema protomental funciona a partir dos incorporados culturais. Indo um pouco além, consideramos que os conteúdos inter e transgeracionais integram os incorporados culturais, elementos que estão na base através da qual o aparelho de pensar pensamentos em família se constitui, e funcionam como limites que dão forma e contenção ao sensorial (p. 32).

 

Até agora, a estrutura da obra se apresentou com dois eixos: a história da psicanálise e o sujeito singular-plural. Tendo estabelecido esse movimento contínuo entre as camadas e as direções de ir e vir no tempo e na constituição psíquica, pretendo seguir a apresentação dos conceitos como eles se encadeiam no livro para percorrermos a trilha proposta. Já temos muito da forma, vamos tentar agora nos ater ao conteúdo, na ordem em que ele se apresenta ao leitor. Mas peço, por favor, não se esqueçam da sanfona se movendo e produzindo sons que reverberam em muitas direções…

Um pouco adiante, nos deparamos com Anzieu e sua conceituação do eu-pele. Aqui há a ligação entre “a construção do aparelho psíquico e a experiência corporal”. (p. 35). A autora localiza o conceito em diálogo com Bion e Winnicott, relembrando-nos do funcionamento básico do psiquismo grupal:

 

A grupalidade psíquica é condição do advir do sujeito e a ela o sujeito sempre se reportará.(...) A sensorialidade é entendida como parte da constituição do aparelho psíquico familiar, ao mesmo tempo que expressão de traumatismos transmitidos entre as gerações e como recurso clínico na análise com família (p. 36).

 

Aqui, damos um passo a mais: Palermo conecta, por fim, grupo, família, constituição psíquica individual, intersubjetividade, sensorialidade, trauma e cadeia geracional. A ideia de que há um grupo que nos antecede, nos recebe, ao qual nos reportaremos e do qual seremos elo com nossa singularidade, recebe o acréscimo do conceito de sensorialidade. Para esclarecer a conexão entre o corpóreo e o psíquico (separados com um fim didático na obra), chegamos à ideia de identificação primária. Para tanto, a fonte é de autores que se debruçam sobre a primeira infância, como Geneviève Haag, em diálogo com Anzieu e Bion. É aqui que a autora nos oferece um panorama maior sobre a complexidade de seu pensamento clínico:

 

Há um movimento de coesão, onde partes de cada um do grupo, como também, o grupo em si, recompõe-se através do jogo de identificações primárias sensorialmente recíprocas. Isso permite a constituição de um duplo folheto de pele psíquica. Os dois folhetos (...)são parcialmente separados. O externo mantém a pele comum, envelopando os espaços individuais, já o interno, pelo efeito da comunicação projetiva, integra as partes internas umas às outras. Quando o grupo alcança uma maior modulação e metabolização das projeções identificatórias (...) as relações de objeto despontam no lugar dos conflitos arcaicos. A etapa de introjeção do duplo folheto de pele respalda o envelope psíquico grupal, favorece a singularização de cada membro do grupo e viabiliza a integração dos sujeitos como objetos totais (PALERMO, 2024, p. 37).

 

O movimento entre o singular e o plural, entre o arcaico e o atual, se dão a ver pelo ar que a analista injeta no campo, fazendo respirar e soar os tempos e os espaços. Eis o acordeon sendo tocado e produzindo notas e harmonias. Mas Fernanda também se propõe a olhar para o ritmo, mais uma vez a partir de Haag:

 

A autora propõe pensar que, no nível mais primitivo, ocorre, através do olhar, uma ritmicidade que cumpre o papel integrador do tocar. O olhar seria a primeira contenção, precedente à formação estável de uma pele. Dá-se uma estrutura rítmica apoiada sobre a cinestesia do corpo que, a partir de um vai e vem de projeções e introjeções, constitui um vínculo simbiótico. (...) É pela troca penetrante de olhares que se interioriza uma sustentação, o que, progressivamente, acompanha a sustentação de palavras, de atenção e de preocupação (p. 38).

 

Com o ritmo, ela alcança também a importância de pensarmos sobre a questão da continuidade e descontinuidade como partes do processo de subjetivação do sujeito em devir que é o bebê, imerso numa trama grupal que o precede. Na página 54, encontramos referência a essa problemática:

 

Quando experiências de descontinuidade passam a figurar no cenário, oportunizando falhas de subjetivação, os membros da família podem permanecer aderidos aos aspectos sensoriais e em dificuldades na apreensão de uma experiência de existência (p. 54).

 

Traz ainda mais um conceito importantíssimo da tese defendida: o de alianças inconscientes, “um dos pilares na teorização da grupalidade psíquica e está presente em toda configuração de vínculos, seja nos casais, nas famílias, estendendo-se para as instituições. [Kaës define essa aliança] como o cimento de todo o vínculo” (p. 48).

Essas alianças, definidoras tácitas das regras do jogo grupal, têm dupla função: “Em um sentido sincrônico, visa-se a uma extensão na temporalidade psíquica, mas ela pode, no sentido diacrônico, ter sido delineada antes do nascimento do sujeito. Esse é o campo da herança e dos processos de transmissão psíquica, que movimentam o sentido de vida e de morte entre as gerações” (p. 49).

A partir da soma desses conceitos até aqui apresentados, Palermo nos guia até uma das situações de atendimento à família, já adentrando ao campo dos adoecimentos que chegam à clínica, dizendo que:

 

Nas configurações familiares em que a tendência à adesividade é marca preponderante, a ressonância psíquica entre os membros da família se intensifica e funciona no sentido de garantir a homeostase, proteger contra as angústias de separação e obstruir a ascensão das singularidades. O funcionamento primário comum aciona aspectos defensivos e pode reduzir a comunicação a mecanismos de defesa que operam pelo agir e pela vivência de ilusão de corpo comum  (p. 55).

 

No segundo capítulo, nos vemos embasados o suficiente para acompanhar o movimento da autora em direção à cossensorialidade propriamente dita, núcleo desta pesquisa. Como de costume, Palermo, antes de dar um passo adiante, nos conta de onde parte esse passo. Retoma Freud e seu conceito de pulsão, colocando-a em contato com o grupo familiar e com os vínculos, dizendo que:

 

“A família, através de sua grupalidade psíquica e de sua economia libidinal, precisa administrar as cargas pulsionais circulantes e a coexitação presente nos vínculos. A desorganização psicossomática em família aponta para uma sobrecarga da economia psíquica familiar” (p. 60).

 

Aqui, percebe-se que, segundo a hipótese da autora, a questão econômica também atravessa o desafio de existir como sujeito dentro de um grupo que nos antecede. E que a forma como esse manejo quantitativo se dá faz parte das possibilidades de saúde ou de adoecimento, a partir dos movimentos individuais e grupais, sempre com uma dimensão relacional. Quando adentramos ao item 2 do segundo capítulo essa dimensão se torna protagonista, no entanto, nunca de forma apartada das outras dimensões já propostas anteriormente:

 

A dimensão relacional impressa no processo de subjetivação é destacada nos estudos sobre a intersubjetividade, mas também encontra suas raízes nos estudos sobre o intrapsíquico. Seguindo a ideia de não opor as dimensões intrapsíquicas e intersubjetivas, ressaltamos a simultaneidade no que tange à discussão sobre a família e a sensorialidade. Refletir sobre família significa entrar num campo de diálogo e de reinvenções (p. 64).

 

Na base deste diálogo, encontramos Coelho Junior e sua proposta de co-corporeidade, apoiada no conceito de intercorporeidade de Merleau-Ponty, no qual o dualismo mente/corpo é mais uma vez desmontado e o surgimento de um campo do “entre”, ressaltado (p. 67).

Ferenczi também é apresentado, com suas contribuições ao campo do trauma real, vindo do ambiente e não da esfera da fantasia, como postulou Freud.

Há, neste mesmo capítulo, o que Fernanda chama de “um breve diálogo com a neurociência” (p. 69), em que a biologia reafirma que a mente (resultado da conexão entre o cérebro e o resto do corpo) é uma “totalidade integrada, tanto em estrutura quanto em funcionalidade, em constante relação com o ambiente”  (p. 71).

As conversas prosseguem, pensando sobre o bebê, com Bick, Haag e Winnicott, buscando elaborar de onde vem a segurança para sermos sujeitos únicos e ainda assim estarmos assegurados do pertencimento a um grupo que atravessa o tempo e nos leva adiante. Bem como tentando levantar hipóteses sobre os rasgos desse tecido arcaico e suas consequências ao longo da vida intrapsíquica, intersubjetiva e grupal.

A dimensão cossensorial, (suas causas e consequências possíveis) é definida no item seguinte. Palermo defende a ideia de que a cossensorialidade é a forma preferencial de interação familiar quando o envelope familiar não foi capaz de conter e metabolizar suficientemente os afetos despertados entre os membros do grupo. É, pois, o avesso da comunicação bem-sucedida, que garantiria “a ilusão tranquilizadora e as identificações narcísicas” (p. 87).

Lembrando que comunicação verbal não é necessariamente sinônimo de saúde, ressaltamos a dimensão criativa das comunicações sensórias nos campos intrapsíquico, intersubjetivo e grupal. No entanto, por outro lado, a autora deixa claro que:

 

O sofrimento familiar acontece quando a função protetiva do vínculo falha, acionando excesso de angústias e medo do colapso. É possível considerar que diante de um temor de ruptura catastrófica do vínculo familiar seja (re)ativada uma modalidade de comunicação cossensorial com redução dos espaços psíquicos entre os sujeitos, que acarreta uma sobrecarga econômica: um sensorium em ampla ativação(...). O campo do traumático é o do arcaico (p. 89).

 

Apontando para um caminho clínico possível diante dessa espécie de sofrimento, Palermo alinhava seu raciocínio, lembrando da especificidade de compreensão e de manejo necessários, distante do padrão da psicanálise clássica, embora com a âncora bem fincada nela:

 

Consideramos o campo do originário como o da forma, do movimento, da ritmicidade, do advir e o da primazia do sensorial. O significante formal, constituído por imagens proprioceptivas e cinestésicas que precisam ser transformadas em um espaço multidimensional familiar, é uma organização diferenciada da fantasia que se inscreve mediante a exigência fantasmática originária familiar (p. 93).

 

Trata-se de uma proposta de implicação da analista que vai além do conhecimento intelectual e do concernimento emocional. A proposta é a de um corpo presente, vivo, em trabalho de percepção e metabolização, munido de tato e respeito, de forma horizontal ainda que assimétrica em relação ao paciente. É também de uma analista consciente da polifonia interna e externa que deve ser sustentada no campo analítico, sem, entretanto, ou talvez sobretudo por isso, perder a reserva.

Essa analista-instrumento é feita do material da árvore da psicanálise que transita entre tempos e pensadores. Ao virar instrumento, escutam-se marcas variadas da madeira originária.

Fernanda insiste em iluminar ainda mais a relação entre a teoria de Bion e a experiência sensorial antes de seguir adiante e nomear o próximo tópico: “íntimo, intimidade e habitat familiar”, no qual ela discorre sobre “a cossensorialidade e a experiência de habitat familiar” (p. 102), pensando sobre como habitamos a casa da família e como ela nos habita. A dialética proposta encontra eco em Bachelard, filósofo francês, que afirma que “o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo, em uma trama relacional” (p. 103). A relação entre a casa e o envelope familiar é nítida:

 

O lugar a habitar ressalta uma questão de base primária, de conquista de segurança, de intimidade na família, sendo marcado por uma história ontogenética, inter e transgeracional. Ao longo da vida, a necessidade da família de se envelopar para vivenciar o sentimento de segurança e de repouso pode ativar um estado regressivo, representativo de um tempo em que se formaram os vínculos primários e os primeiros envelopes que os contiveram (p. 105).

 

Por outro lado, resguardando a dialética proposta, é preciso perguntar também como essa casa nos habita. Que condições ela dá ao sujeito de viver um espaço íntimo, não invadido, dentro desse habitat? Se, por um lado, a casa da família pode ser espaço de ilusão de unidade promovendo identidade e segurança, por outro, esse mesmo espaço pode ser campo de

 

“um imperativo silencioso que instaura um problemático paradoxo: a intimidade é sentida como um risco por aproximar conteúdos mais primitivos, ao mesmo tempo em que o fechamento em torno da própria família ataca o estabelecimento de outros vínculos” (p. 107).

 

Assim, chegamos ao próximo capítulo, que vai tratar dos campos da transgeracionalidade e incestualidade na família. Começando pela transgeracionalidade, a autora põe tintas mais fortes sobre o fato de que “a reflexão acerca da cossensorialidade na família aponta para a importância dos modos de atuação da transmissão inconsciente” (p. 109). E mais:

 

A base inconsciente dos vínculos familiares repousa sobre o negativo da transmissão. Este é o campo da transmissão daquilo que não pôde ser contido, retido, aquilo que não está acessível à memória, mas está inscrito no psiquismo familiar e nos corpos e será depositado e transferido às gerações posteriores. (p. 111).

 

Fernanda propõe um amplo percurso para pensar a problemática da presença (em negativo) da transgeracionalidade, fazendo um passeio pelo traumático e pelas formas de transmiti-lo, baseado em configurações defensivas radicais. Sem que o vivido seja experienciado não há nenhuma condição de metabolização. A autora defende que a única comunicação possível dessas marcas, dessas criptas, é pela via da sensorialidade, no aquém das palavras e até dos pensamentos. Aqui, a autora se vale dos conceitos de cripta e fantasma de Abraham e Torok, apontando para um quadro defensivo que isola a possibilidade de luto e introjeção e que busca se defender do traumático através da incorporação. Palermo esclarece que a cripta e a transmissão independem da origem do trauma (intrapsíquico ou externo):

 

“A ênfase não está no evento traumático, mas no efeito traumático que repercute nos vínculos e nas alianças familiares. O sujeito porta um segredo e a vergonha que a ele está ligada, através de identificação e de incorporação, fator mais relevante do que o conteúdo do segredo em si” (p. 119).

 

Uma das consequências mais nefastas dessa transmissão com excesso de negatividade é que “a interdição do acesso ao psiquismo perturba a capacidade de pensar, de ter curiosidade e de aprender dos sujeitos. Já que (...) o comunicado circulante é de não poder saber (...) é preciso interditar o saber como um todo” (p. 129).

Pelas transmissões, chegamos aos mandatos. Àquilo a que o sujeito está destinado mesmo antes de nascer. Os membros da família são agentes de uma continuidade narcísica, em suas faces alienantes e encriptadas e/ou criativas e de fomento à singularidade de cada membro. Este contexto é parte fundamental dos vínculos e alianças inconscientes e, por conseguinte, das transmissões inter e transgeracionais.

Também pela via da transmissão, Palermo nos expõe o conceito de mito familiar e sua relação com a temporalidade: “um conjunto de crenças compartilhadas e transmitidas, por intermédio de narrativas (…) que indicam as origens da família. O mito facilita a inscrição de seus membros na linhagem” (p. 137). Lembrando que a mitologia familiar, como algo transmitido e compartilhado, não cessa de ser recriada por cada membro, cumprindo uma função organizadora e indicativa de pertencimento. Haveria, segundo Granjon, um “envelope mítico” que faz “uma transposição e uma explicação do real, mediada pelo imaginário, que permite o acesso a uma leitura primária do universo e do mundo subjetivo” (p. 138).

Neste ponto, estamos com instrumentos suficientes para avançar em direção à incestualidade que surge como uma das consequências possíveis da transmissão do traumático e como um indicador da presença massiva de tais mitos em sua dimensão patológica.

A incestualidade é apresentada como um funcionamento psíquico confusional, estreito demais, que recusa os espaços individuais e geracionais. E nessa medida, o que resta é proteger a família de sua ameaça maior: o mundo externo ou a intimidade que separa os membros dentro da própria família. Diz a autora: “Nesses casos, ocorre uma reativação de uma relação de sedução narcísica, acompanhada por paradoxalidade (...): forma de interação que sobrepõe comunicados e visa, através do quadro confusional, estabelecer vínculos de dominação” (p. 147).

É nesse contexto que Fernanda recorre mais uma vez a Ferenczi e seu conceito de confusão de línguas: autor contemporâneo a Freud, retoma a importância do trauma real a partir dos excessos do adulto em direção à criança, que funciona em outro registro. Ferenczi refere-se explicitamente ao adulto que se volta à criança com uma linguagem apaixonada, enquanto ela funciona no registro da ternura, pré-genital. Neste sentido, talvez possamos afirmar que os abusos podem ter como fatores iniciais os funcionamentos psíquicos que revelam a incestualidade familiar como tônica importante. Seguindo esse trilho, penso que a identificação com o agressor, outro importante conceito ferencziano presente no mesmo texto de 1932, poderia ser colocado em diálogo com as transmissões psíquicas nefastas, nos modelos apresentados pela autora, gerando novos traumas, como um circuito fechado que se retroalimenta.

Ainda tratando da função defensiva da incestualidade frente ao traumático, podemos encontrar configurações familiares em que a dupla fusão-rejeição acontece como uma gangorra. Diz Palermo: “Se o acesso ao édipo se torna problemático [por uma fantasia de autoengendramento] a sedução narcísica impera, mantendo um alto nível de coexcitação que sobrecarrega o psiquismo da família” (p. 149). O luto originário é barrado, a posição depressiva kleiniana não pode se estabelecer a contento e o espaço para a alteridade e a reparação é dificultado.

A autora, mais uma vez, alinha os conceitos e esclarece suas correspondências:

 

A presença do incestual e a desconstrução da trama edípica são dois fenômenos alinhados, a ponto de não ser possível dizer que a desconstrução do Édipo é o que provoca o incestual ou vice-versa. O transgeracional diz da herança como também da sexualidade e os segredos de filiação e os traumatismos transmitidos podem conduzir a um ataque grave à garantia da lei. (...) Consideramos que, diante da qualidade incestual nos vínculos familiares (...) a tônica passa a ser dada ao tempo arcaico em que a comunicação ocorre pela cossensorialidade  (p. 151).

 

Se é “na trama da incestualidade [que] a problemática do transgeracional se revela”, temos aí mais uma relação estabelecida entre fatores suplementares do sofrimento humano. É a partir deste ponto de interseção de fatores que Fernanda retoma a pauta da transmissão pelo negativo sem elaboração, os segredos familiares, abordando enfim os segredos da incestualidade, como segredos de morte e transgressão. É importante marcar que a incestualidade é, segundo a proposta da autora, antilibidinizante, uma vez que ataca a vida como expansão e criação. Acompanhando Winnicott, ela diz:

 

As interações marcadas pelo excesso do negativo e pela qualidade incestual aludem aos segredos que se opõem à intimidade e à privacidade. Volta-se, neste ponto, ao questionamento acerca da ameaça à solidão fundamental, pois todo o contexto aqui referido ataca a vivência do paradoxo winnicottiano de estar só na presença do outro (p. 155).

 

Uma vez exposto todo o arcabouço teórico e toda a hipótese clínica, Fernanda passa a trabalhar com as alternativas possíveis para mitigar o sofrimento e cuidar dos casais e famílias que a procuram, sufocados por transbordamentos, tantas vezes sem nome. É no sonho do analista, com seu corpo e sua implicação, mas também, paradoxalmente, resguardando sua reserva, que Fernanda busca as brechas encontradas e criadas para interferir no grupo, apostando que um novo membro, com novas capacidades de metabolização, cocria um grupo diferente do anterior e que, a partir disso, algum movimento pode acontecer. A aposta na escuta com o corpo, no cuidado através do ritmo, nos toque com o olhar significa priorizar, nestes casos, a forma e não o conteúdo. A cossensorialidade não requer interpretações, requer outras ferramentas que partem de outros sentidos e de outro tipo de raciocínio clínico, como espero ter exposto aqui.

Por fim, encontramos vinhetas clínicas nas quais a autora exemplifica toda a delicadeza e complexidade da prática desta proposta, difícil de ser sustentada, atravessada por um não saber que se torna matéria-prima de escuta psicanalítica.

Ao fim do percurso do livro, restam em mim algumas percepções e desejos…

Igualar em importância a presença do sensorial às palavras é deixar de separar natureza e cultura de forma tão estática, quebrando um binarismo que acredito ser perigoso em nosso fazer cotidiano, sob o risco de a análise se tornar um trabalho meramente intelectual. Acredito que seja preciso legitimar o valor dos corpos e o campo criado por eles no enquadre analítico em tempos de tantos sofrimentos narcísico-identitários, que requerem um analista com outras faculdades mentais a serviço do paciente, que não as da chamada psicanálise clássica, fundada no recalque.

Ainda, a quem se atrever, parece-me que este livro é um convite a olhar com outros olhos para “o romance familiar do neurótico”, pondo em movimento nossa práxis e nossa própria possibilidade de rever nossas histórias individuais, familiares e sociais.

Talvez seja esse o motivo pelo qual precisamos tanto de analistas-pesquisadores: para que eles nos desafiem, nos desassosseguem e, assim, possamos caminhar juntos rumo a uma psicanálise mais condizente com nossa época. A psicanálise contemporânea, pós-escolar, como a escolhida por Fernanda, ganha em polifonia, em complexidade, em elasticidade e abrangência. Pensar e sonhar o que vem antes de cada sujeito que adentra nossos consultórios é também propor um novo devir para cada analista e – por que não? – para a psicanálise como um corpo que nos precede, nos recebe, mas que é também formado por cada um de nós, a cada dia, em cada novo encontro.

Biografia do Autor

Camila Flaborea, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, São Paulo, SP

Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisa Sándor Ferenczi. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com Especialização em Primeira Infância. Está em formação em Psicanálise de Casal e Família no Instituto Nebulosa Marginal. São Paulo, SP, Brasil.

Publicado
29-10-2024
Como Citar
FLABOREA, C. Tecendo laços e desatando nós:. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 46, n. 51, p. 219-232, 29 out. 2024.