Hélio Pellegrino:

Inconfidências

  • Larissa Leão de Castro Universidade Federal de Goiás - UFG, Goiânia, GO

Resumo

Há sem dúvida quem ame o infinito.
Há sem dúvida quem deseje o impossível.
Há sem dúvida quem não queira nada.
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: 
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais,
se puder ser,
Ou até se não puder ser...

 

Assim a poesia de Álvaro de Campos poderia descrever a vida de Hélio Pellegrino, cuja saga lírica aqui narrada embevece-nos e enternece-nos com a história de um homem que combinou tão bem sentimento, pensamento e ação. Celebremos o centenário do seu nascimento nesta justa, bela e necessária homenagem ao ser humano Hélio Pellegrino, em sua totalidade de pessoa, poeta, psicanalista, marxista, filósofo político e teólogo.

Um intelectual brasileiro da melhor cepa que, no turbilhão de perplexidade e desassossego diante das encruzilhadas das questões existenciais, esperanças e sofrimentos próprios, de seu povo e de seu tempo, além das experiências dramáticas de transformação social, escreveu uma vasta obra, se revelando, nas palavras do autor João Lembi, um pensador da esperança, um pensador inquieto e insubmisso, na cadência de seu inconformismo contra todas as formas de opressão.

Hélio Pellegrino foi uma das figuras históricas mais relevantes da psicanálise do século XX do país, figurando entre os psicanalistas da quarta geração do freudismo internacional, a ponto de podermos afirmar a existência de uma perspectiva pellegriniana da psicanálise, que deveria ser formalmente reconhecida, lembrada e estudada.

Se Freud poderia ganhar o prêmio Nobel pela descoberta do complexo de Édipo e do processo civilizador como uma das mais valiosas conquistas da humanidade; como o autor João Lembi nos mostra, Hélio Pellegrino, na mesma tradição, retoma a “insofismável riqueza que a psicanálise trouxe para a humanidade. Inconsciente, desejo, ética e liberdade”. De fato, em seu pensamento há ufania pela ética da psicanálise, obliterada por amnésias históricas indefensáveis e a serviço do status quo.  Sua vida e escritos psicanalíticos testemunham uma rica estrada de um pensamento sobre a psicanálise e uma sociedade verdadeiramente democrática.

Com desassombro, interrogou quais elementos estruturantes de um processo civilizador libertário ou perverso, interrogando também sobre a capacidade de a psicanálise e as instituições psicanalíticas se comprometerem com o processo civilizatório e com a luta pela sobrevivência da humanidade do homem. Na dedicação a este tema, insistiu em investigar profundamente quais elementos garantem a coesão do tecido social, desdobrando-os nas noções originais e inestimáveis acerca da relação indissolúvel entre complexo de édipo, pacto edípico e pacto social. Elas marcam o pensamento do psicanalista, que pode ser considerado patrono da psicanálise brasileira socialmente compromissada, já que insistiu na tese da centralidade do compromisso social da psicanálise por meio destes conceitos que resgatam e desdobram verdades libertárias da psicanálise, que muitos insistem em obliterar.

A trama presente na briga travada por Hélio Pellegrino na busca da demonstração de a psicanálise ser incompatível com o autoritarismo da SPRJ e da IPA, frente ao caso Amílcar Lobo, que se omitiram frente à tortura e aderiram ao status quo da ditadura, seria digna de ser escrita por Nelson Rodrigues para ser teatralizada, filmada, pintada, pois o aforismo tem inestimável valor histórico para se pensar a adesão ao autoritarismo em tendências presentes nas instituições psicanalíticas no mundo. Sim, Hélio Pellegrino era um pensador da esperança, não sem ver a espessura da muralha da opressão que a impede de florescer. “Pessimismo teórico, otimismo prático”, o autor relembra o lema de Antônio Gramsci, pois batalhou incansavelmente pela democracia em todas as instituições.

Contra as distorções da psicanálise, João Lembi nos mostra os meandros da história de Hélio Pellegrino, que nos deixa seu legado ao fundar, junto com Katrin Kemper, a primeira Clínica Social de Psicanálise do Brasil, democratizando a psicanálise e seu acesso ao enfatizar o direito do pobre e do rico de libertar-se interiormente; iniciativa que se multiplicou no país, fruto de conquistas democráticas.

Detalhes de autêntica beleza captada por João Lembi, nos permitem conhecer a humanidade de Hélio Pellegrino, que dava resposta subversiva diante da tendência hegemônica de violência dos psiquiatras e alienistas manicomiais de seu tempo. Imbuído do movimento da antipsiquiatria, narrou-o a Fidel em Cuba. Sua fervorosa indignação com a existência dos manicômios no Brasil era levada para todos os espaços e para as instituições psicanalíticas em forma de revolta diante da impostura de grande parte dos psicanalistas que agiam como burocratas ao darem importância à loucura dos ricos e nenhuma importância à loucura dos pobres, o que levantava a questão de não se levar a sério a probidade intelectual de Freud frente ao sofrimento psíquico e frente às pessoas que são jogadas em instituições forjadas para práticas de tortura. Hoje, sabemos que a Reforma Psiquiátrica brasileira tem muito a conquistar, mas é uma das experiências mais exitosas do mundo e contou com expressiva participação de psicanalistas. Hélio é sonho que nos faz despertar para a liberdade real.

O autor, João Lembi, com este livro de exuberante embriaguez, que intercala sincronia e diacronia, tece com poesia na forma e conteúdo, um retrato digno e fiel do turbilhão de compromissos do poeta e psicanalista, cuja vida foi de entrega ao outro, à literatura, ao encontro e o ao confronto alteritário jamais disjuntivo, mas sempre portador de negatividade crítica capaz de fazê-lo assumir a radicalidade de sua condição de sujeito e a verdade profunda de seus desejos. Poderíamos dizer, Hélio Pellegrino fez uma boa análise, assumiu sua palavra plena, original.

A trajetória de Hélio Pellegrino merecia uma prosa lírica que siderasse sua história de vida e o poeta da vida, João Lembi, nos oferece esta da melhor estirpe e alta gentileza. A escrita é bela, fluida, envolvente, leve, amistosa, lírica, repleta de jocosas passagens, honrando o patrimônio histórico e cultural do mundo latino, pândego, com seus batuques e ode à vida. Hélio Pellegrino já dissera: “Levantamos até os céus os rumos de tambores e batucadas, para que as constelações se regozijem pelo conhecimento que temos da cadência do Cosmo. Somos libertários e desregrados, portadores de uma alegria que já é o sal da terra, apesar da fome, da miséria e das chagas que nos vulneram. Por isso, nossos poetas voam tão alto”.

O autor, João Lembi, com a elegância de quem aprendeu a despojar-se de seu narcisismo em prol do encontro com o outro, não se insere na escrita do livro como grande amigo de Hélio Pellegrino que foi e acompanhou suas histórias, mas descreve o aspecto sobejante do amigo que foi uma das pessoas mais importantes de sua vida, de forma comovente, diligente, com cadência e sensibilidade poéticas dignas do esteta.

O livro é um convite a todos que queiram conhecer o exemplo Hélio Pellegrino, que foi um arauto da esperança, da democracia, de trabalho pela aceitação e valoração das diferenças, de luta por uma vida digna para todos. O pensador insubmisso, seu exemplo de luta, de pensamento crítico e de resgate da essência do compromisso social da psicanálise continuará ecoando na eternidade para as futuras gerações. Pelas mãos de João Lembi, descobrimos: está encantado e nos levará sempre a êxtases. Evoé!

Biografia do Autor

Larissa Leão de Castro, Universidade Federal de Goiás - UFG, Goiânia, GO

Psicóloga social e Psicanalista. Doutora em psicologia Clínica e Cultura. Foi professora na área da Psicologia Social e Psicanálise na Universidade Federal de Goiás (UFG/REJ), Regional Jataí. Pesquisa principalmente as seguintes temáticas: subjetividade, cultura, psicanálise, educação, violência, fundamentos teóricos e projetos políticos de sociedade. Brasília, DF, Brasil.

Referências

FERREIRA, J. B. L. Hélio Pellegrino: Inconfidências. Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições, 2024. 251 p.

Publicado
29-10-2024
Como Citar
CASTRO, L. Hélio Pellegrino:. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 46, n. 51, p. 235-238, 29 out. 2024.