1961 Notas sobre o conceito da interpretação

  • Comissão Editorial
  • Anna Kattrin Kemper Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ, Rio de Janeiro, RJ

Resumo

Como a grupoterapia de orientação analítica é de recente aplicação, (1) (2) (3) não autoriza ainda a emissão de conceitos de natureza definitiva, nem no que concerne às concepções teóricas, nem quanto ao procedimento terapêutico. A função interpretativa “conditio sine qua non” do processo analítico, está ao nosso ver, na grupoterapia, num estado que permite apenas concepções no sentido de “por enquanto parece que”. 

Por Freud, sabemos que a interpretação tem por finalidade tornar consciente o inconsciente (4). A interpretação na grupoterapia de orientação analítica visa principalmente, devido à concepção global, em primeiro lugar, conscientizar as vivências do “aqui e agora” da situação coletiva global, tanto em relação ao terapeuta como aos componentes do grupo. A interpretação grupal possibilita especialmente a focalização das manifestações de sentimentos, ligadas remotamente a objetos de inveja, ciúme e competição, transferidas no “aqui e agora” do grupo. A interpretação sendo tanto referência como comunicação (6) (7) encontra na situação múltipla do grupo condições especiais. A interpretação deve ser considerada na psicoterapia de grupo principalmente sob o aspecto do singular válido para o plural. Em outras palavras: a interpretação com referência às manifestações de um membro necessita ser, de certo modo, válida para os outros do grupo. A interpretação pretende atingir na concepção global a mobilização e reação coletiva. Por exemplo: num grupo de quatro anos de tratamento, composto de elementos antigos e novos, ocorreu a seguinte situação: “Lea”, a líder do grupo, sofreu o primeiro impacto de sua liderança, quando “Ricardo", rompendo a angústia de sua agressão, revida aos seus costumeiros e ferinos ataques dirigindo-lhe um palavreado do mais baixo calão. A reação de Lea foi intensa. Fechou-se em mutismo. Passou a faltar e, quando presente, ereta, altiva, imperturbável, limitava-se a lançar à terapeuta e ao grupo olhares que exprimiam intenso ódio. Quando Lea não comparecia, os companheiros a mencionavam com palavras desabonadoras: chata, imbecil, etc., manifestando também o desejo de que ela se desligasse completamente. Lea por sua vez, procurou a terapeuta, no final de uma das sessões, solicitando a sua transferência para um outro grupo, fazendo referências pejorativas a alguns dos companheiros, declarando não os suportar mais. Esta solicitação não foi atendida. Afora algumas facetas que lhe foram evidenciadas pela terapeuta, as interpretações vieram a uni-las em denominador comum; por exemplo: “Vocês me agridem me deixando de lado fogem da manifestação de uma raiva mortal contra mim; Lea representa essa raiva do grupo, por isso deseja escapar, como também vocês desejam se livrar dela.” A tensão aumentava e a situação prolongou-se por uns três meses. Finalmente houve uma sessão em que “Vera” e “Paulo” tomaram papel preponderante; são dois jovens depressivos de personalidades bastante semelhantes. Vera começa a fumar, o que jamais fizera até então; comunica sentir angustia intensa, não suportando mais a situação. Conta que fora impelida durante a semana a procurar Lea em sua casa. Paulo então solicita Lea, numa tentativa de trazê-la de volta à convivência grupal. De maneira imprevista, Lea explode – “não é nada disso, não tenho raiva de ninguém; eu fui atingida e ferida; tenho sofrido muito. Fico louca de vontade de falar, venho para cá me arrastando; mas algo superior às minhas forças, como uma barreira, me impede de fazê-lo. Depois disso, dirigindo-se a cada um – e excluindo a terapeuta – fala de mediocridade da participação deles. Exalta, por outro lado, a colaboração que ela, Lea, dera aos demais até então. Interpretação grupal: o grupo está dividido e vocês temem a manifestação de raiva sentida contra mim, por isso essa raiva foi encapsulada em Lea. Em parte, vocês a agridem e expulsam, em parte a procuram e se aproximam dela. 

Na situação em foco, as interpretações globais possibilitam não só o início da reintegração do grupo, como também permitiu a liberação de vivências remotas ligadas ao ódio arcaico, como poderemos observar em sessões posteriores, de maneira crescente. Por exemplo, Lea, como representante de uma parte do grupo, comunicou, o seguinte: “A minha impressão é que estive gravemente enferma e que agora estou convalescendo; vejo o mundo mais suave e bonito; tolero melhor as pessoas, principalmente aquelas que me provocaram a maior raiva".

"No meu período 'psicótico', sentia-me muito próxima de 'Luiz' e 'Luiza' dois jovens bastante esquizoides, (os mudos do grupo); pensava neles constantemente, desejando muito que se abrissem". A seguir relatou um sonho no qual apareciam um gato e uma coruja, com cores lindas e dos quais se aproximava com encantamento; estes animais já haviam aparecido anteriormente em seus sonhos, como imagens remotas de seus país perseguidores.  Aspectos da revivência arcaica do grupo foram revelados por Luiz e Luiza que falaram da grande angústia que lhes foi despertada durante o “mutismo” de Lea: esta não lhes saía do pensamento. Luiz começa a relatar uma série de sonhos, nos quais sempre ocorria o choque entre dois veículos; num deles, uma lotação passou por cima de um “volks”, transformando-o numa lâmina metálica. Em seguida relatou dois sonhos que evidenciam também como as vivências arcaicas não eram tão temidas como anteriormente no grupo. 

1º Sua mãe saía do caixão; ressuscitava, a fim de pedir satisfações a Paulo; vinha ajustar contas com ele, por assim dizer.

2º A sua mãe aparecia de maneira mais estranha, toda em pedaços; tocos de braços e de tórax, de madeira; tocos de coxas, únicas porções feitas de carne. A estas últimas partes, o paciente, aconchegado, beijava e chupava com sofreguidão. A genitora assumia proporções gigantescas enquanto o paciente sentia-se minguado, diminuto. 

O ódio arcaico focalizado tornou-se a função projetiva mais clara e direta nos sonhos de Luiza, como veremos a seguir:

1º Alguém do grupo atacava a senhora (a terapeuta), e eu, muito angustiada, procurava defendê-la. 

2º Eu falava no grupo, mas sempre que dizia qualquer coisa, sentia que a senhora não dava a menor importância; em dado momento, comecei a quebrar tudo o que havia em sua sala. 


Biografia do Autor

Anna Kattrin Kemper, Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ, Rio de Janeiro, RJ

Anna Kattrin Kemper, também conhecida como Catarina Kemper, foi uma das pioneiras da psicanálise no Brasil. Nascida em 1905 na Alemanha, chegou ao Rio de Janeiro em 1948 com sua família, acompanhando seu marido, Werner Kemper, que tinha a missão de fundar uma sociedade psicanalítica. Em 1955, participou da fundação da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), mas foi excluída da instituição em 1971 por não comprovar formação oficial como psicóloga ou psicanalista, sendo reconhecida apenas como grafóloga.

Apesar disso, Catarina teve uma atuação marcante na psicanálise brasileira. Trabalhou com crianças e jovens, organizou seminários, grupos terapêuticos e realizou experiências inovadoras em psicoterapia de grupo. Era conhecida por seu estilo não convencional, sensível e afetivo, o que a tornava uma analista muito procurada, especialmente por artistas e intelectuais.

Fundou o Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro em 1969 e, em 1973, criou com Hélio Pellegrino a primeira clínica social de psicanálise do país, voltada ao atendimento de pessoas de baixa renda. Defendia uma abordagem mais calorosa e empática na clínica, especialmente em casos de psicose, autismo e transtornos de personalidade.

Publicou diversos artigos relevantes na área e deixou um legado importante, sendo homenageada com o nome de uma biblioteca e de uma rua no Rio de Janeiro. Sua trajetória é lembrada como a de uma psicanalista ousada, que desafiou normas institucionais e antecipou debates contemporâneos sobre a prática psicanalítica por não médicos.

Referências

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Publicado
01-08-2025
Como Citar
EDITORIAL, C.; KEMPER, A. 1961 Notas sobre o conceito da interpretação. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 47, n. 53, p. 165-178, 1 ago. 2025.